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A questão do humanismo, aqui aflorada pela Ana Cristina Leonardo, é essencial em mais uma execução - não neguemos as evidências, Khadafi foi executado - de um ditador árabe. Depois de Saddam, a cuja morte assistimos em directo, e de Bin Laden, de quem não chegámos a ver o cadáver, o déspota líbio, capturado, espancado e assassinado pelos revolucionários. Contudo, se é verdade que não devemos ser ingénuos em relação ao gesto de quem mata Khadafi, também não deveríamos ser no que diz respeito à natureza do acontecimento: ao longo da História, as mudanças de regime raramente acabaram no julgamento dos antigos governantes. A diferença entre passado e presente reside apenas nos meios de registo à disposição. Não há imagens da cabeça de Robespierre nem do corpo de Hitler envenenado, mas de Mussolini resiste no imaginário colectivo a fotografia do seu cadáver dependurado e ensaguentado, acompanhado na morte violenta pela amante e por alguns dos seus próximos. Alguém considera - ou, para todos os efeitos, considerou - que não terá sido feita justiça no caso do fascista italiano? É que, na realidade, a execução de Mussolini não passou de um acto de vingança revolucionária (os julgamentos em tempos de guerra tendem sempre para a farsa encenada). Para um detractor da pena de morte, deverá ser tão deplorável um julgamento seguido de execução pelo Estado como uma execução a frio, sem julgamento. O que muda, então? A imagem em movimento e a actualidade do acontecimento. A imagem de um ditador que durante décadas governou um país perseguindo e matando parte do seu povo é esmagada pela evidência da brutalidade cometida sobre ele. O ditador transforma-se em vítima - ou deveria transformar-se, aos olhos de um verdadeiro humanista. Mas que essa inversão não apague dois factos: que nós, olhando para o ecrã, não estamos lá (apesar de acreditarmos nisso); e que na morte do ditador as vítimas deste não deverão ser esquecidas. É humano, tratar assim um Homem? Não, seguramente. Mas o cérebro primitivo, violento, não condescende em momentos destes. E se falamos de uma turba, de um colectivo, mais facilmente a violência se impõe e domina. E aí não há Razão que salve o ser humano de si próprio.
(Recordo dois textos que escrevi a quando da morte de Saddam Hussein. E constato que a minha posição não é exactamente a mesma. Dá que pensar.)