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Arrastão: Os suspeitos do costume.

Vamos brincar à política

Daniel Oliveira, 20.01.14

 

 

Deixo o tema da co-adopção e da adopção por parte de casais do mesmo sexo, assim como os limites do instituto do referendo, para outro texto. Não apenas para garantir alguma economia argumentativa, mas para não misturar uma conversa séria com a palhaçada a que assistimos na última sexta-feira. Hoje, trato do lixo.

 

Muito resumido: a maioria dos deputados, onde se incluíram 16 do PSD, aprovou a lei que permite a co-adopção de crianças por parte de casais do mesmo sexo. A mesma maioria chumbou a adopção. Foram estes deputados e não outros, foi nesta legislatura e não noutra, que tudo isto se passou. Durante meses, depois dessa aprovação que resultou da liberdade de voto que foi dada aos deputados do PSD, houve um longo debate na especialidade. Foi criado um grupo de trabalho - coisa que não é obrigatória - e ouvidas organizações e especialistas. Os deputados negociaram. Tudo certo, sem falhas e de forma invulgarmente exemplar, para que a versão final da lei já aprovada fosse feita com todos os dados fundamentais para uma decisão informada. Hugo Soares, líder da JSD, foi um dos deputados que fez parte desta comissão. Ali nunca exigiu qualquer referendo.

 

Já em cima da votação final, cinco meses depois da aprovação na generalidade e dos trabalho desta comissão, o deputado tirou da cartola, sem ninguém perceber porquê, o tal do referendo. Quando a ideia do referendo surge caída do céu aos trambolhões e em completo desrespeito pelo trabalho parlamentar até se propõe que seja em simultâneo com as eleições europeias, o que é legalmente impossível. Tal era a ponderação da coisa. São apresentadas na proposta de referendo duas perguntas: sobre a co-adopção e adopção. Uma sobre uma lei aprovada, outra sobre uma lei chumbada que ninguém voltou a propor. Ou seja, dois assuntos diferentes (coisa que a lei orgânica dos referendos não permite) misturados, sendo que a segunda pergunta é sobre uma proposta que ninguém está a fazer, o que torna o referendo um pouco bizarro.

 

Não uso, nunca usei, o argumento das prioridades. As sociedades conseguem ter vários debates em simultâneo e por estarmos em crise não estamos impedidos de pensar noutros assuntos e em discuti-los e sobre eles deliberar. Mas um referendo (como disse, a adequação deste tipo de consulta popular ao tema deixo para outro texto, talvez amanhã) exige uma mobilização geral para que o debate seja realmente nacional e a participação seja minimamente relevante. Parece-me impossível acreditar que, no meio duma crise económica destas dimensões e em vésperas de eleições europeias e das negociações para a nova fase da austeridade (seja resgate, programa cautelar ou outra coisa), mobilizar o país para um debate tão específico é uma impossibilidade prática. Caso este referendo avançasse, é provável que votasse apenas uma minúscula minoria de convencidos dum lado e do outro, não dando qualquer representatividade ao referendo. O único resultado seria desacreditar do instituto do referendo.

 

Claro que este referendo não vai acontecer. Se não for chumbado pelo Tribunal Constitucional, será vetado pelo Presidente da República. A criancice é de tal forma evidente e o consenso nacional contra este disparate é tal, que não tem como passar daqui. E estou convencido que foi mesmo apresentado de forma a que não passasse disto. O pior é que, no caminho, a maioria atirou mais uma acha para a fogueira onde arde a credibilidade do Parlamento. E desacreditou ainda mais a democracia. E, o que é mais extraordinário, tudo isto aconteceu contra a vontade da maioria dos deputados, que se limitaram a fazer este triste papel por pura obediência.

 

O que levou a maioria a levar isto até ao fim? Com um empenho nunca visto, tendo sido, pela primeira vez nestas matérias, imposta disciplina de voto aos deputados do PSD. Só pequenas guerras internas do PSD, desagradado com o resultado da liberdade voto dos deputados, o podem explicar. Só que escolheram o pior momento e o pior tema para tão reles jogo político. O tempo é de desconfiança generalizada nas instituições democráticas. O tema envolve pessoas concretas, famílias e crianças que existem. E que veem umas dezenas de irresponsáveis, acompanhados por gente incapaz de dar um murro na mesa perante tamanha idiotice, a brincarem com as suas vidas.

 

Na última sexta-feira assistimos ao que de pior existe na política: a leviandade dos que julgam que a política é apenas um exercício lúdico a usar a vida dos cidadãos para as suas mesquinhas demonstrações de poder. Quando o Presidente da República ou o Tribunal Constitucional puserem um ponto final a isto o assunto morrerá. Mas foi mais um prego no caixão do democracia representativa.

 

Publicado no Expresso Online

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